30 junho 2011

Piazzolla e Guevara

chegado a casa, vai ao quarto. directamente. despe-se. não suporta o calor. fica de boxers. só depois arruma a mochila. terminou mais um dia de trabalho. está só. na cozinha come um pêssego, sofregamente, como se estivesse atrasado para sair de casa... talvez para apanhar o comboio, o autocarro, alguém o espera. não. está mesmo sozinho, não tem compromissos, nada combinado. é desnecessário devorar a peça de fruta daquela maneira. nem saboreia o sumo doce que aquele fruto verte. é muito. é bom. mas ele está atrasado para nada. lava as mãos. na sala não sabe o que fazer. sente-se perdido. senta-se no sofá? talvez no cadeirão? liga a televisão ou o computador? ou ambos? dirige-se à estante. é daquelas rectilíneas que se compram nas grandes superfícies de móveis. sim, agora há supermercados de tudo e para tudo. de automóveis, de material desportivo, de electrodomésticos, de comida, de móveis. "de móveis, vejam lá...", pensa ele quase sem se aperceber. "isto levava uma arrumação. mas não é hoje." pega num livro de receitas. não é isso que procura. é música que lhe apetece ouvir. "onde estão os discos de blues?" não estão ali. jazz não é o que lhe apetece ouvir. uma preciosidade. uma colectânea de Astor Piazzolla, lá bem ao fundo. parece escondida. ganhou vontade própria. não quer girar e girar no leitor de CD. engano. não oferece resistência. a caixa aberta. são dez discos. Soledad é o nome do primeiro. um arrepio. um vazio. o coração parece ter deixado de bater. cuidadosamente, retira o CD do invólucro e coloca-o na aparelhagem previamente preparada para o receber. Play. de repente, a sala, até ali escura, solitária e fria (apesar do calor que lhe faz escorrer o suor pela cara) fica perfumada. são rosas. vermelhas. o par dança na sua imaginação mas rapidamente desaparece. a Argentina cantada e tocada no tango remete-o para um salão escuro onde homem e mulher dançam sensualmente, com os corpos colados. não. não desta vez. toca Fugata; Soledad; Final; Vamos, Nina; Los Paraguas de Buenos Aires. a música que ecoa fá-lo pensar em Guevara. e, de repente, ele desaparece daquele espaço com uma dúzia de metros quadrados. sente-se lutador, combatente. deseja batalhar e defender os mais fracos. o nó aperta-lhe o pescoço. custa-lhe respirar. a sensação de impotência é grande, mas ele está farto desta situação. quer equilíbrio, quer justiça. No Quiera Otro; Violetas Populares; Preludio Para El Año 3001. é vertiginosa a forma como as faixas se consomem. cerra os punhos e bate na mesa com violência...

descansa. liberta-se e supira. sente-se mais leve, mais tranquilo. Jeanne Y Paul; Fuga Y Misterio; El Penultimo. termina o disco. faz-se silêncio e ele continua só, mais está mais feliz e sereno.

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